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Perdão e Obrigada, Dona Léa

  • Foto do escritor: Cynthia Martins
    Cynthia Martins
  • 8 de set. de 2023
  • 4 min de leitura

Foto: Leo Martins / Agência O Globo | texto originalmente escrito em Agosto de 2023


70 anos de uma carreira irretocável.

Uma mulher que atravessou gerações, viu o Brasil e o mundo mudarem, que ousou ser intelectual, pensadora..

Afrontou a sociedade ao escolher viver de arte em um país que até pouco antes de seu nascimento tinha como projeto eliminar pessoas iguais à ela. Iguais a nós.

Projeto que ainda existe em outros moldes. Mas existimos e resistimos.


Léa Garcia fez parte de um dos movimentos mais icônicos, necessários, disruptivos e gigantescos da arte brasileira: o Teatro Experimental do Negro, criado na década de 1940 por Abdias do Nascimento.

Abdias não só foi seu marido, mas ator, poeta, político e dos maiores do movimento negro da história do Brasil.


Um encontro tão mágico, mas que é do conhecimento de poucas pessoas. Principalmente da branquitude.


Imagine formar uma companhia de teatro nos anos 40 somente com atores negros? Houve na arte brasileira algo tão gigantesco e afrontoso quanto isso? Não, na minha humilde opinião.


Fico me perguntando se a morte de Abdias acontecesse nos dias de hoje.

Faço esse exercício desde a morte de outro nome muito respeitado na arte dos palcos, Zé Celso Martinez. Abdias teria o mesmo peso e o mesmo espaço de cobertura jornalística que teve a morte de Zé?


Quem vive a realidade do Brasil, sabe que Zé era desconhecido da grande massa, que sequer tem acesso ao teatro em um país onde uma entrada custa em média 70 reais.


E a verdade é que, conversando com pessoas comuns em um país onde a arte do teatro é para muito poucos da elite, Zé Celso só foi descoberto depois do peso (merecido) que deram à sua trajetória interrompida de forma tão trágica.


Mas esse destaque é para poucos.

Por que não pra Dona Léa?


Concorreu a um prêmio em Cannes, um dos maiores festivais de cinema de do mundo.

Ganhou quatro prêmios Kikito, a maior honraria do Festival de Cinema de Gramado.

Tem um currículo vasto, e que ainda tinha espaço para um sem número de realizações.


Falo isso pois todos fomos atravessados pelo erro da Folha de São Paulo, ao publicar a foto de atriz Jacyra Alves como se fosse Léa Garcia.

O mesmo aconteceu em uma reportagem do G1.

Sempre nos confundem. E essa confusão de que todos os pretos são iguais, custa a nossa vida, nossa existência diariamente.


Como disse Elisa Lucinda em entrevista à CBN, essa confusão faz parte dos padrões do Estado brasileiro, que usa reconhecimento facial para prender pessoas, em sua maioria pretas, que em quase 80% dos casos são inocentes.

E Elisa levanta outra questão: confundem Eliana com Claudia Leite? Não.


E esse descaso com nossa história é tamanho que alguns não se deram ao trabalho de publicar nenhuma linha sobre a morte de Dona Léa, uma das maiores de nossa história.


E podemos fazer uma comparação com um exemplo recente.

Dona Aracy Balabanian, que partiu em 07 de agosto de 2023, uma semana antes de Dona Léa, foi capa de sites e ganhou espaço várias vezes em telejornais de diversas emissoras. Já Dona Léa, pioneira, foi deixada lá pra baixo em vários sites.

É assim que nos tratam.


A ausência de Dona Léa em alguns veículos da imprensa explica muito sobre o Brasil que ela ajudou a desmascarar: um Brasil de lideranças brancas que não reconhecem, esquecem ou simplesmente escolhem tentar apagar a trajetória de gigantes como ela.

Se fomos e somos ainda apagados, é graças a um trabalho muito bem feito da branquitude.


Diretores nas redações são em sua maioria brancos. Tomadores de decisão são brancos.

Então enquanto não nos permitirem ocupar cargos de liderança nesses espaços, decidir o que vai pro ar ou não, nossa história nunca vai ser prioridade.


O projeto de nos apagar é tão bem elaborado, que a própria vida de Jacyra Silva conseguiu ser engavetada. Confesso que eu não a conhecia.

Uma mulher negra que também abriu caminhos no teatro, na TV, no cinema, e nunca nos deixaram saber da história dela.

E só estamos sabendo agora porque estamos conseguindo nos apropriar de nossas histórias.


Foi justamente esse o teor da fala de Dona Léa, em uma de suas últimas entrevistas concedidas, em abril deste ano, para o podcast Pretoteca, que comando na Rádio Band News FM:


"Mesmo falando de novelas: novela de época ainda é a visão do ex-colonizador (...) Nunca foi feito um trabalho com a nossa visão em relação a eles. Então é um olhar estereotipado. Necessitamos dos nossos autores nos textos, dos nossos cortadores em televisão e cinema, dos nossos diretores, dos nossos continuistas, dos nossos autores, principalmente, para então termos uma linguagem nossa, uma visão nossa, o nosso olhar, a nossa vivência e a nossa existência".


A lucidez de Dona Léa emociona.

Ativista, lutadora, ciente das violências do racismo até o fim da vida.


Tenho a sorte de compartilhar a cor da pele, a sede de justiça, a sede de luta, e até a data de aniversário.


Claro que sua passagem é motivo de tristeza. Toda morte é. Saber que sua presença física não será mais possível, dá sim uma sensação de lamento, de tristeza. Até porque seus planos eram tantos.

Mas ter sido sua contemporânea é de uma sorte imensa.

Poder celebrar sua existência em vida foi um dos maiores presentes que a vida poderia nos dar.


Em nossa última conversa a senhora falou sobre teatro, cinema, novelas. Tantos voos ainda a serem dados...


Se depender dos seus que ficaram, Dona Léa, sua história está e estará para sempre nas primeiras páginas.

Jamais esquecida.

 
 
 

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© 2022 por Cynthia Martins

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