Pretos não podem sonhar
- Cynthia Martins
- 19 de ago. de 2023
- 3 min de leitura

Vini Jr. é vítima constante de racismo na Europa. Imagem: reprodução/redes sociais
O único assunto possível dessa coluna nesta semana é a violência sofrida por Vini Jr.
A semana vai acabando, mas o sofrimento que senti e sinto, não. Ecoa e dói fortemente em mim.
Ver, rever as imagens cruéis daquela agressão a um menino tão jovem e cheio de talento me machucou profundamente, porque é uma dor que dói em mim todos os dias.
Revira o estômago, leva a nós, negros, de volta a um passado de dor.
Um passado que ainda é presente e, infelizmente, futuro.
Vini Jr. é um menino de origem pobre, de uma favela de São Gonçalo, região Metropolitana do Rio.
Contrariou todas as projeções a respeito dele.
Como canta Emicida em "Ismália", nos ensinam a não voar tão perto do Sol, pois "Eles num guenta te ver livre, imagina te ver rei." O sistema "abutre quer te ver de algema pra dizer: "Ó, num falei?!"
E querem parar Vini Jr porque ele teve a ousadia de sonhar.
Sonhar e realizar pra uma família preta de classe baixa é algo que sequer é permitido em um mundo tão racista.
E mesmo quando esse sonho se realiza, não basta ter talento, ser um dos maiores jogadores de futebol da atualidade, ter dinheiro, índole, caráter, profissionalismo, conquistar títulos, ter o sorriso estampado no rosto.
Nada disso basta quando é a cor da pele que chega primeiro.
Num mundo que prioriza pessoas de pele mais clara e traços mais finos, como Vini Jr, de somente 22 anos, de pele retinta e traços fortemente negroides ousa ser tanto?
Ser tanto não apenas em campo.
Ele ousa bailando, entregando, inspirando, em um mundo em que o papel esperado pra nós, negros, é de silêncio, de cabeça baixa, de conquistar títulos pra você, mas jamais estar no topo.
Silêncio é o que sempre esperaram de nós.
Silêncio que sempre calou nossos tantos jogadores pretos, há anos vítimas de racismo dentro e fora de campo.
E quem ousou falar, foi calado à força.
Aranha pagou com a própria carreira ao denunciar e se revoltar com o racismo.
PC Caju, craque da Copa de 70, teve a denúncia e militância como marca e sempre foi taxado de chato e exagerado.
Mas o silêncio acabou!
Uma nova geração de pessoas negras e jogadores negros está armada de argumentos e exausta de baixar a cabeça.
E Vini vem liderando essa geração.
O futebol, muitas vezes, quer se colocar como um planeta à parte quando o assunto é racismo, preconceito, violência...
Mas ele segue exatamente os mesmos moldes do mundo fora dos campos: jogadores majoritariamente negros - o chão de fábrica, os que produzem o brilho da festa - mas o comando e a liderança seguem sendo exclusivamente masculino e branco.
Como pode a Seleção Brasileira, por exemplo, com um histórico tão vitorioso, com jogadores em sua maioria negros, não ver nenhum desses jogadores absorvidos em cargos de liderança?
O mesmo acontece nas séries A e B do Campeonato Brasileiro. Nesse momento, dos 20 times de cada série, NENHUM deles possui sequer um treinador negro.
Será que eles não existem? Não querem ser treinadores? Ou será que quem comanda não vê capacidade de liderança em homens pretos que ganham tantos títulos?
Marcelo Carvalho, do Observatório Racial do Futebol, em conversa com o podcast Pretoteca, que eu comando na Band, bem lembrou a situação do treinador Roger Machado.
Roger foi capitão dos times pelos quais passou como jogador. Comandou algumas equipes como treinador, ganhou títulos, mas tem que ouvir que não tem capacidade de ser líder.
Se um ex-capitão não tem capacidade de ser líder, quem teria?
Enquanto isso, nosso futebol prepara e aposta apenas em lideranças estrangeiras e sempre brancas.
O comando da CBF esteve vidrado em trazer Carlo Ancelotti, treinador do Real Madrid, o maior time do mundo, pra comandar a Seleção Brasileira.
Por que nunca cogitaram trazer Aliou Cissé, ex-jogador e atual treinador da Seleção Senegalesa e que é considerado um ícone do futebol africano e mundial?
E seguimos sem preparo algum de entidades de futebol pelo mundo pra lidarem com a questão.
As entidades europeias, sul-americanas - tanto no esporte ou fora dele - não conseguem compreender o que é racismo.
Tanto que, na Espanha, a tipificação de racismo está inserida em crime de ódio.
A Conmebol, Confederação Sul-Americana de Futebol, que registra diversos casos de racismo todos os anos em jogos da Libertadores e da Copa Sul-americana leem casos desse tipo como xenofobia.
E as ações de combate não são práticas, efetivas. Multa não basta. Dinheiro está em caixa, é moleza para os clubes. Mas e as ações? As punições aos clubes? As perdas de ponto, de mando de campo?
E sabe por que a Fifa, a Conmebol, a Espanha, a Europa, as estruturas comandadas por brancos jamais vão entender a gravidade do que se passa todo dia com pessoas pretas?
Emicida tem a resposta: eles "tem tudo, menos cor, onde cor importa demais."
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