Pra minha mãe, pro meu pai e pra você
- Cynthia Martins
- 19 de ago. de 2023
- 5 min de leitura

Imagem: Divulgação/Globoplay
Esperei ansiosamente pela estreia do documentário da Xuxa.
Acompanhei todas as entrevistas recentes, reportagens, chamadas pro documentário que levaria muitos e muitas de nós que fomos crianças nos anos 80 e 90 de volta ao passado.
Acordei na manhã de 13 de julho de 2023 já pronta pra dar play no documentário, mas a estreia marcada para as 18h aumentou minha ansiedade.
Depois de muito esperar, finalmente assisti no dia seguinte à estreia.
Curioso perceber que meu corpo se posicionou diante da TV exatamente como eu fazia na década de noventa.
Sentada no chão, na posição que chamávamos de 'pernas de chinês', ereta, com o pescoço erguido para alcançar a TV no alto da estante. Ficava assim imóvel pelo tempo que durasse o programa.
O corpo hoje, claro, não faz mais esforço para enxergar a TV. Mas minha criança interior, sem perceber, se posicionou do mesmo jeito para assistir o passado revirado de Xuxa como se fosse uma manhã da década de 90, esperando o Xou da Xuxa.
Revirar o passado de Xuxa me fez revirar meu próprio passado.
Chorei de nostalgia e saudosismo em vários momentos, porque de fato me senti revivendo tudo aquilo.
Mas chorei principalmente por revisar um lugar de rejeição.
A partir dos 34 minutos o documentário fala sobre a febre das paquitas, dos testes, das filas intermináveis de meninas que sonhavam com aquele cargo mais que cobiçado pelo país inteiro.
Como eu sonhei em ser paquita!
Colocava baldes na cabeça, imitando o famoso chapéu das meninas discípulas da Xuxa...
Depois de velha, falei muitas vezes que Xuxa me devia anos de terapia. E entendi que, mesmo querendo tanto, eu jamais poderia ser uma paquita.
A partir desses 34 minutos, a própria Xuxa, em um vídeo que eu desconhecia, confirma a tese de que meninas como eu jamais poderiam ocupar aquele lugar.
Em um vídeo que parece ser no fim dos anos 90, provavelmente 1998, é dito o seguinte:
"Fisicamente tem que ser pessoas magras..."...."tem que ser bonitas..."... "Algumas meninas morenas que mandaram foto, que foram até lá, a Marlene até achou muito bonitas. Não digo que ela não venha a fazer o teste com essas meninas. Mas a preferência da Marlene é por loiras, porque ela descobriu através dessas cartas que as pessoas eram apaixonadas pelas paquitas loiras."
Aquilo me doeu tanto.
Ter agora, quase 40 anos depois, a sentença verbalizada é muito doloroso.
Pois foi a opção por meninas tão diferentes de mim que fizeram um estrago na cabeça e na autoestima na maioria da população.
Sim, o Brasil é de maioria feminina e negra.
Foi por causa dessa porta fechada que eu colocava fraldas na cabeça, simulando um cabelo liso que eu nunca teria.
Foi por causa desse 'não' que eu coloquei pregadores no nariz pra que ele ficasse mais fino.
Foi por causa desse padrão que nenhum menino na escola se interessou nem por mim nem por outras colegas negras.
Foi por causa desse 'não' que até depois da adolescência eu evitava tomar sol pra não escurecer ainda mais a minha pele já escura. Era melhor ser 'morena', 'parda' que ser preta.
É um lugar de tanta rejeição, de tanta violência, de tanta dor com tantas meninas pretas... E uma delas era eu.
O documentário traz uma fala de Xuxa já em 2023 sobre o poder da TV naquele momento. Que era um momento em que as crianças estavam sendo criadas na frente da TV, vendo a TV como grande companheira, e que ela assumia esse lugar de babá, de professora que não dava bronca, fazia o papel de boneca, de parceira...
Em um país onde a maioria dos lares é comandado por mulheres negras - mães, tias, avós - que cuidam dos seus e de toda uma comunidade, onde está o reconhecimento pelo papel de cuidado exercido por essas mulheres?
A ausência de pessoas negras cuidando, criando, fazendo companhia para as crianças no espaço televisivo, diz muito sobre como o universo da TV ainda nos enxerga.
Quantas pessoas negras comandam com protagonismo um programa de entretenimento no Brasil? Sinto dizer, nunca houve.
Até hoje o Brasil não deu a nós pessoas pretas o direito de entreter o Brasil. E não há como não associar essa porta fechada a um passado que deu apenas às mulheres loiras e brancas essa missão.
Confesso que estava ansiosa pra saber se essa questão do racismo seria abordada no documentário.
E Xuxa diz o seguinte:
"Era um momento onde, se você parar pra pensar, as princesas, as bonecas, eram o estilo de imagem que eu tinha pra oferecer. Não existia nem boneca Barbie negra. A gente não via nem como discriminação, nem como preconceito, nem como racismo, nem como errado. Era uma coisa tão natural. "É isso que a gente tem pra oferecer pra vocês". Esse dedo que hoje a gente coloca, ou que a gente vê ou que a gente põe nos anos 80, seja Marlene, seja eu, seja quem for que fez isso, eu vejo hoje como um erro, vamos dizer assim"
A gente não pode mudar o passado. Mas a Xuxa perdeu aí uma grande oportunidade de se retratar, de aprofundar uma questão que vai além do erro.
O racismo acabou com minha autoestima e o contexto da época tem total responsabilidade nisso.
Como eu já disse nessa coluna, é preciso conhecimento, exercitar a escuta, entender porque é tão urgente se aprofundar nessa questão nos tempos atuais. O problema é que parece que somos apenas um lado interessado em estudar temas raciais e tocar na ferida.
Não sei se a questão vai ser abordada mais pra frente no documentário - imagino que não - mas se Xuxa tinha "a imagem certa" à época, é bom lembrar essa é a imagem que o mundo ainda recebe de braços abertos.
Por mais que outras portas tenham sido abertas pra nós negros - a muito custo - ainda assim não importa o cargo que uma pessoa preta ocupe no Brasil e no mundo: a cor da pele sempre vai chegar primeiro.
Revisitar o passado de Xuxa é também revisitar um passado brasileiro tão racista quanto o presente. E infelizmente tão revista como ainda será o futuro.
Mas definitivamente não podemos reduzir o fenômeno Xuxa na cabeça das meninas pretas como um simples erro.
Fiz aqui minhas críticas. E seguirei fazendo se necessário.
Ainda assim, não consigo explicar meu sentimento pela Xuxa. Mesmo com um pensamento hoje tão lúcido sobre o racismo na sociedade brasileira, ainda consigo guardar um lugar de muito carinho pra ela no meu coração.
Talvez seja minha criança interior resistindo, apesar de saber que o lugar de princesa ao lado da Rainha nunca será pra ela.
Talvez, como toda criança, ainda resista.
Talvez minha criança feche os olhos e repita a posição ereta na frente da TV, repita o batom vermelho nos lábios pra beijar a própria mão, esperando que um dia possa encontrar Xuxa, abraçar Xuxa e tentar explicar esse lugar de idolatria que ela ocupou.
Além de um beijo e um abraço pro meu pai, pra minha mãe e pra você, o que eu e outras tantas meninas pretas queríamos mesmo era um pedido consciente de desculpas.
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