A Dona Maria tem a cor da minha avó
- Cynthia Martins
- 19 de ago. de 2023
- 2 min de leitura

A Dona Maria tem a cor da minha avó. Imagem: Cynthia Martins/Arquivo Pessoal
Meu avô estudou somente até a antiga quarta série. Minha avó não sabia ler e nem escrever.
Era o sonho da Dona Mercedes saber juntar letras, palavras, formar frases.
Ela tentou aprender uma coisinha ou outra e reconhecia números, sabia escrever seu próprio nome - tudo com aquela letra insegura e pura dos que estão experimentando os primeiros movimentos entre o lápis e o papel.
Prometi a ela que um dia pagaria uma professora para ensiná-la. Não tive tempo.
Ela achava bonito demais estudar. E sempre entendeu que esse era o único caminho possível pra que quem viesse depois dela não repetisse a mesma trajetória.
Uma trajetória bonita, cheia de ensinamentos, valores inestimáveis que carregamos até hoje. Mas uma trajetória dura.
Lavar roupa pra fora, carregando na cabeça a grande trouxa de roupa lavada da favela até o bairro nobre. Trabalho honesto, mas mal pago, mal valorizado.
E a trajetória foi mudada. Meus pais foram os primeiros, ainda que fora do tempo regulamentar, a entrar e concluir a universidade em suas famílias.
Relembro tudo isso pois não consigo deixar de revisitar minha história quando me vejo ocupando a bancada do jornal que comando ou quando escrevo essa coluna.
A profissão que escolhi - que obrigatoriamente passa pela escrita e hoje de certa forma faz com que minha avó realize seu sonho - não foi planejada para que eu estivesse aqui hoje ocupando esse lugar. O Brasil não suporta que negros estejam onde estamos eu e outros jornalistas negras e negros.
Durante os primeiros anos de faculdade me lembro de sermos orientados a comunicar de uma forma que o "neguinho do trem entendesse".
Uma orientação que ainda se estende às redações HOJE.
Olhar de soberba que ignora o valor do conhecimento que tantos "neguinhas e neguinhos do trem", ou "Donas Marias e Seus Josés" têm.
Um olhar embranquecido, erudito, que acha que tudo que vem do que está à margem é menor, sem valor. Foi assim com o samba, é assim com o funk, é assim com tudo que é preto e periférico.
É através das palavras que mudamos o mundo. E Dona Mercedes sempre soube que seria assim. Foi me incentivando a juntar letras, formar palavras e frases que ela realizou o meu sonho, mas principalmente o sonho dela.
Dona Mercedes não teve tempo nem oportunidade de estudar. Mas a semente que ela e tantas outras avós analfabetas plantaram resistiram, floresceram e entenderam a missão de transformar a sociedade e de comunicar pra quem mais importa: para as tantas donas Marias.
Eu sou a neguinha do trem. A Dona Maria para a qual o jornalismo não quer se direcionar.
Eles não imaginavam, não imaginam, não querem imaginar e no fundo jamais vão aceitar: a neta da neguinha do trem, agora está entre eles.
E mais atenta e forte do que nunca.
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