A morte de Pelé e o perdão
- Cynthia Martins
- 19 de ago. de 2023
- 3 min de leitura

A morte de Pelé foi, é, e sempre será um acontecimento impactante pra todo ser humano que teve a sorte de ser contemporâneo dele.
Desde sempre jornalistas como eu, que antes mesmo de sonharem em serem jornalistas, já ouviam conversas com a frase "o dia que o Pelé morrer..."
Sempre soubemos que seria algo tão sem precedentes que nos custou acreditar que esse dia chegaria.
Chegou. E a morte dele nos trouxe luto, agradecimento, reflexões...
Não apenas pela morte do corpo físico que abrigou o mito, mas por tudo que aquele homem - um dos mais importantes que já existiram, representou.
Fez o brasileiro mais jovem - eu mesma, que não tive a sorte de vê-lo jogar - entender a grandiosidade de um homem que inventou o futebol - e o Brasil como o conhecemos.
Homem preto, nascido na pequena mineira Três Corações.
Homem que se parece com muitos pretos desse Brasil.
Quantos meninos e homens negros, antes mesmo de terem seus nomes pronunciados, eram primeiramente chamados de Pele? Meu irmão, meus primos, meus tios, amigos negros...
Imaginei que, após a morte, muitos dedos seriam apontados por causa do episódio de Sandra Regina. Não vi nenhum texto falando agressivamente desse capítulo da vida de Pelé.
Todo brasileiro, todo o mundo sabem bem da batalha que a filha fora do casamento travou durante toda sua vida para ser reconhecida como filha biológica que era. Conseguiu provar depois de incontáveis mortes emocionais que era de fato filha de um dos homens mais poderosos do mundo.
Nenhum de nós tem a menor ideia da tristeza profunda que deve ter acompanhado Sandra durante toda vida.
Uma amiga que não teve o carinho do pai sempre me demonstrou muita raiva desse episódio. Ela, que sempre falou do lugar de Sandra, sabe o que deve ser essa dor que eu desconheço.
Ela deve ter passado a vida toda se perguntando: "Por que eu?"
Mesmo com capítulos questionáveis de sua trajetória, que nem cabem a nós julgar, e entre tantos textos escritos após a morte de Pelé, eu quero falar sobre o poder do perdão.
Ser preto no Brasil não é fácil. Para homens pretos que alcançam sucesso, sucesso financeiro então...
O homem preto não é ensinado a falar sobre afetos. Não é ensinado a demonstrar. Até porque "homem não chora".
Somente eles sabem o que aconteceu entre eles. Uma resposta que nunca vamos ter.
Esse episódio da passagem de Pelé me colocou diante de muitas memórias pessoais da passagem do meu próprio pai.
Meu amado pai nunca foi perfeito. Ele mesmo disse isso inúmeras vezes.
Só nós sabemos do distanciamento que tínhamos quando eu era adolescente. Muitas brigas, muitas discordâncias, muito silêncio.
Mas, o tempo, ah, sempre ele.
E por causa dele, como diz Eliana Alves Cruz em seu livro 'Solitária', "foi preciso que eu crescesse para compreender que todo mundo tem uma história e que eu não podia cobrar coisas que ele nunca aprendeu a dar." que eu aprendi sobre ressignificar as relações. É duro perdoar quando se é humano, quando somos tão ensinados sobre rancor.
Tudo isso me leva também à biografia de Viola Davis. Ela conta da relação conturbada que teve com o pai. Praticamente quase uma não relação. Um pai que a feriu profundamente - e literalmente a mãe, que foi violentada fisicamente de todas as formas inimagináveis.
A cura da relação entre ambos me fez lembrar da cura da relação com meu pai. Me faz refletir sobre a cura da relação dos filhos de Sandra para com o avô, Pelé.
Os netos perdoaram. Sandra não teve tempo, não teve direito a uma conversa com o pai que tanto a negou. Seja lá qual era a fé de Pelé, ele deve ter elevado o pensamento à filha em muitos momentos, talvez pedido perdão a ela e a Deus.
Conseguiu pedir perdão aos netos pessoalmente.
O leito de morte deve ser algo muito assustador...
Imagine saber que a vida está no fim, sem nenhuma luz sobre o que vem depois...
Em nome do meu pai, de pais pretos desse país, quero deixar aqui essa reflexão sobre perdão.
Parece fácil falar do lado de cá. Sei que é difícil ressignificar as coisas, mas no último sopro, Pelé foi perdoado. De alguma forma, ele "se acertou" com a vida da forma que deu.
Em algum momento da vida meu pai, com seus defeitos, me ensinou que é com amor que a gente resolve as mágoas e fecha as feridas.
Encerro recordando trechos da carta que consegui ler no ouvido do meu pai, horas antes de ele partir.
"Dia desses você falou algo sobre achar que a gente não amava você. E disse que você sempre amou a gente. Do seu jeito. Eu não tenho a menor dúvida.
Não existe um jeito certo de amar. Mas amar já é o jeito certo de mergulhar nas coisas. Seja do jeito que for."
A Pelé, a meu pai, agradeço por serem tanto.
Ambos definitivamente não passaram por aqui em branco.
Estão vivos em mim, em nós, nesse ciclo cheio de desafios e sem fim que é o viver.
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