Em tempos de Copa: e eu, imigrante e jogador, não sou um cidadão?
- Cynthia Martins
- 16 de dez. de 2022
- 4 min de leitura
"Saudades de quando os jogadores da França eram Michel Platini, Didier Deschamps... Agora é Mbappé, Kanté, Kimpembe, Nkunku... Era mais fácil de falar quando eram nomes franceses." Essa frase extremamente racista e xenofóbica foi proferida recentemente em uma redação de jornalismo.
Muitos ouviram. Ninguém fez nada. Minha reação foi levantar e sair. Mas a ignorância não pode ser perdoada para alguns. Racistas merecem respostas. E respostas fundamentadas. Quando esse comentário é jogado no ar, muita coisa vem junto com ele. É um comentário manchado com o sangue e a morte de muita gente. Estamos falando de gente.
O planeta vive uma das maiores crises migratórias da história. De acordo com Agência da ONU para Refugiados, há pelo menos 89,3 milhões de pessoas em todo o mundo que foram forçadas a deixar suas casas. Deste número, quase 27,1 milhões são refugiados.
Metade dessa gente desassistida e desesperada tem menos de 18 anos. Gente que nunca vai ter o direito de ter na lembrança uma bela memória da infância ou da juventude.
Gente que teve de desviar de guerras, violência, perseguições e abusos de direitos humanos para ter o direito básico de viver. Alguns dos que conseguiram desviar de destinos praticamente certos de morte, e foram acolhidos, acabaram mudando a cara de diversas nações pelo mundo. E consequentemente mudando a cara das seleções de futebol.
Ter Mbappés, Kantés, Kimpembes defendendo a França é totalmente fruto dessa crise global de imigrantes, dessa movimentação de pessoas tentando em qualquer horizonte uma vida mais digna.
Mbappé é filho de pai de Camarões e mãe da Argélia. Kanté é filho de um casal vindo do Mali. Kimpembe e Nkunku têm raízes no Congo. Isso só para citar a França, que em 2018 - ano em que ganha a Copa depois de 20 anos - tinha mais da metade de sua seleção com origem na África.
Em 2022, o quadro de atletas negros é o seguinte: Estados Unidos têm 12 negros. O Canadá 13. A Bélgica tem 6. Holanda 9. Inglaterra 6. Brasil e França encabeçam a lista com maioria: O Brasil tem 16 jogadores negros e a França, 15.
Nesta Copa que ainda está no começo, o show de 6 a 2 da Inglaterra em cima do Irã foi comandado por jogadores negros. Os mesmos que quando perderam pênalti na final da Euro ouviram gritos de "macaco" e "volta pra Nigéria".
É bom lembrar que o próprio Brasil só tem cinco títulos mundiais por causa da genialidade e protagonismo de jogadores negros. Inclusive, o maior de todos os tempos é negro, é nosso: Pelé.
E que esse mesmo Brasil proibia a presença de negros na seleção há 100 anos. Uma proibição vinda do presidente. Já lembrou Eduardo Galeano, em seu "Futebol ao Sol e à Sombra": "Em 1921, a Copa América ia ser disputada em Buenos Aires. O Presidente do Brasil, Epitácio Pessoa, (...) ordenou que não se enviasse nenhum jogador de pele morena, por razões de prestígio pátrio."
Um time sem negros, que perdeu a competição. É o jogador negro que joga em chão de terra, na lama, levando topada no dedão e que segue o jogo até mesmo na tristeza de campos de refugiados.
Essa é uma Copa que começa justamente num dia tão simbólico para o movimento negro, o dia da Consciência Negra. Mas, como sempre, à sombra de tanto racismo.
E Mbappé, a estrela da seleção francesa, sabe bem dessa crueldade na pele. Um dos melhores jogadores do mundo, no auge de seu futebol, aos 23, pensou em deixar a Seleção, pois sabe o quanto dói "jogar para pessoas que pensam que sou um macaco".
Pra quem sente falta do "francês" Michel Platini, vale lembrar que o próprio tem origem italiana, embora seja nascido na França. Zidane, embora de pele branca, tem origem na África, na Argélia.
O racismo que abre esse texto é não só completamente carregado de desconhecimento sobre as misturas que compõem absolutamente toda nação do planeta, mas também de um pouco de sadismo.
A verdade é que nos porões, no submundo das mentes racistas, o pensamento é sempre o mesmo: o negro serve apenas para e enquanto estamos ganhando a guerra.
Querem nossos corpos ganhando a Copa, dando dinheiro e incentivos fiscais a corporações que investem em "diversidade".
Apenas as vantagens que nossos corpos proporcionam a quem não quer nada mais que dinheiro.
Como diria a escritora norte-americana, bell hooks, quando questiona o feminismo absolutamente voltado e discutido para e por mulheres brancas: E eu, não sou uma mulher?
E os franceses, canadenses, suíços, belgas de origem africana, não podem pertencer às nacionalidades às quais pertencem nem defender as seleções dos países que os acolheram? Eles têm documentação, naturalização, e têm todo direito de defendê-las.
A composição do mundo mudou. Custando a morte de muita gente desde a escravidão. De muitas crianças. Enfrentando mares gelados. Noites perigosas em embarcações insalubres. Enfrentando o fundo do mar como destino.
Não fosse a crueldade de comentários e atitudes racistas, xenofóbicos, aquele menino sírio encontrado morto numa praia na Turquia em 2015, no futuro poderia ter sido um desses jogadores defendendo o país que poderia ter acolhido aquela criança.
Mas comentários e posturas racistas ou coniventes alimentam a crueldade da crise migratória no mundo que dá pouca ou nenhuma chance a quem só quer uma fresta aberta para sobreviver ou respirar.
É sempre bom lembrar onde chegou o jogador canadense Alphonso Davies. Aos 22 anos, o jovem negro que é o melhor jogador do Canadá, e um dos responsáveis por levar o país à Copa depois de 36 anos:
"Uma criança nascida em um campo de refugiados não deveria sobreviver! Mas aqui vamos nós para a Copa do Mundo. Não deixe ninguém lhe dizer que seus sonhos são irreais. Continue sonhando! Continue realizando!"
Enquanto eles tentam nos deixar de fora, somos nós que vamos ganhando a Copa. As Copas. Mesmo sem levantar nenhuma taça. Podem querer ainda a escravização de nossos corpos. Mas a mente ninguém pode escravizar.
*Texto publicado na coluna Pretoteca, no site Orbi News.
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